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MERCADO

Âncora 1

Fraude: perigo ou risco?
Novos olhares para antigas visões

Thaís de Carvalho
Analista de Riscos e Fraudes na Minori Consultoria.
Cursando MBA de Gestão de Riscos Corporativos pela Brasiliano INTERISK em Curitiba

Tomamos por exemplo: se o fogo é um risco, e sobre o risco geralmente não temos controle, reconforta saber que temos controle e formas de evitar exposição maléfica sobre os perigos.

Mas partindo desse pressuposto, a fraude, é um Perigo ou um Risco?

A afirmação: “o avião é o meio de transporte que oferece mais risco à vida, porém é o menos perigoso” parece não fazer sentido antes de conhecer a diferença nos conceitos de Perigo e Risco.


• Risco é algo inerente à natureza do objeto ou fenômeno ao qual se está exposto ou se sabe existente - mesmo não se relacionando com ele;


• Perigo é o nível de exposição a este Risco.


Risco e Perigo andam sempre juntos e onde há Riscos e há atividade humana, há Perigos iminentes.


Então, o avião é o meio de transporte que oferece mais risco à vida e também é o menos perigoso, porque ser arriscado é inerente a este meio de transporte, porém por conta disso as medidas de segurança tomadas são tantas, que os perigos são minimizados ao máximo, tornando ele o meio de transporte mais monitorado, mais sujeito à manutenção constante e regulação, e, portanto, mais seguro.


Usando outro exemplo - o fogo - podemos afirmar: o fogo é um risco por natureza, ele não é mau por vontade, e não se diverte queimando a casa de pessoas humildes ou transformando em cinzas grandes fábricas de milionários. O fogo é o que é... arriscado para tudo e todos, por definição e sem exceção.


Porém, o fogo só vai oferecer perigo se você se aproximar demais, ou perder o controle sobre ele. De resto, guardadas as devidas precauções, o fogo é benéfico; um risco por natureza, mas essencial à atividade humana, se bem utilizado e bem calculados os perigos de se expor a ele.
Já o perigo é evitável, mas muitas vezes inerente à vida. O mar, as florestas, a medicina, a bolsa de valores, há diversas coisas no mundo e no dia a dia ditas perigosas, porém muitas sem as quais não se poderia viver.


Se o fogo é um risco, e sobre o risco (uma fogueira ardente) geralmente não temos controle, reconforta saber que sobre os perigos (brincar de pular essa fogueira), sem dúvida, temos controle e formas de evitar exposição maléfica dele.


Não há dúvida que o fogo é um Risco e não um Perigo (perigo é brincar com ele), mas partindo desse pressuposto, a fraude, é um Perigo ou um Risco?


Antes de mais nada expliquemos o que é e como se dá a fraude.


A fraude é o ato deliberadamente de má fé perpetrado para auferir ganhos ou vantagens imerecidas ou indevidas. De acordo com a teoria do Triângulo da Fraude (CRESSEY, 1953) a fraude se dá a partir da junção de 3 elementos: motivação/pressão, oportunidade e racionalização.
 

revista gestão de riscos online, triângulo da fraude

Consumismo e consequente descontrole das finanças da casa, doença em familiares dependentes, desemprego do cônjuge, desastres naturais (como enchentes que atingem o domicílio do funcionário), pressões por metas irrealistas... diversas situações podem desencadear pressão financeira em um indivíduo. Em fraudes, a pressão financeira invariavelmente é a motivação. Quando se fala na outra ponta do triângulo – oportunidade – fala-se de meios externos ao indivíduo, mas necessários para que a fraude ocorra; como a confiança depositada a ele e o poder de seu cargo ou peso das informações às quais tem acesso e a falta de controles internos que impeçam a prática fraudulenta.


É mister ter em mente que uma vez presente a motivação, esta é o gatilho inicial. A falta de oportunidade pode não parar o ímpeto do agente, se este tem o poder de burlar os controles internos e caso não haja oportunidades; cria-las ele mesmo.


Por fim, tendo a motivação e a oportunidade, se faz necessária a racionalização. Tal fator é o único não material da tríade.


A racionalização é a internalização do ato desonesto da fraude. São as justificativas morais que o agente precisa dar a si mesmo e para sua autoimagem de pessoa de bem. Do contrário, não seria possível a ele conviver com sua imagem no espelho, se sabendo um antiético.


As racionalizações são o próprio convencimento de que aquela fraude não é uma fraude, uma coisa imoral. Assim, nos tranquilizamos com pensamentos como “todo mundo faz e não dá problema”, “é só uma necessidade momentânea e quando eu me reerguer financeiramente eu paro” “uma coisa tão pouca assim não vai fazer falta nem quebrar a empresa”. Há ainda os que se considerando injustiçados por uma não-promoção, explorados e mal remunerados, tomam como “fazer justiça” a atitude de obter reparação com as próprias mãos, independente da falta de ética nos meios empregados.


Sendo assim, posto que a fraude é uma atividade exclusivamente humana, por excelência ela é um perigo (consequência da atividade humana) e não um risco (inerente à atividade humana). A fraude seria um Risco se esta fosse inerente ao ser humano; como respirar, comer, se relacionar, etc. Ocorre que, apesar de não ser por definição um Risco, a fraude está se tornando um Risco, se misturando, miscigenando, se imiscuindo cada vez mais na cultura brasileira.


A desonestidade já se encontra inerente à percepção humana na conjuntura Brasil, mas o que ainda a impede de se tornar inerente à ação humana é somente a valoração da autoimagem que por natureza conservamos. Se a necessidade natural de se sentir uma boa pessoa abandonar o brasileiro, não sobrará nada que impeça a bancarrota da nação.


A Pesquisa Nacional de Valores 2017 encomendada pelo Instituto Datafolha reportou o seguinte resultado após questionar pessoas por todo o país: no campo individual, os participantes votaram no topo de “valores” do brasileiro (indivíduo) a amizade em primeiro lugar, e a honestidade em segundo. Porém quando questionados sobre a cultura do Brasil (enquanto povo) elegeram a corrupção como o “valor” que mais define nossa população. Ou seja: há uma percepção de bondade individual, onde corrupto é o brasileiro, é o povo, não eu.


Para Gianetti (2007), vivemos “O Paradoxo do Brasileiro”, uma dislexia conceitual, a qual se compara com o “Paradoxo do Mentiroso ”: Diante da afirmação: “eu estou mentindo”, podem-se ter somente duas conclusões a respeito dessa afirmação ser verdadeira ou falsa, e ambas serão contraditórias. Se a afirmação for falsa, quer dizer que eu não estou mentindo, logo eu menti quando afirmei ela. Porém se a afirmação for verdadeira, significa que eu disse a verdade quando afirmei estar mentindo. Ou seja, é uma emboscada lógica: a afirmação é verdadeira se for falsa, e é falsa se for verdadeira.


Do mesmo modo se dá O Paradoxo do Brasileiro: somos um país conhecido internacionalmente como o “país do jeitinho” e que inclusive se reconhece como tal, mas povoado por pessoas que individualmente se veem como honestas e invariavelmente discursam indignadas contra “tudo isso que está aí”. O corrupto é sempre o outro, nunca eu, até porque o eu não poderia viver em paz, sabendo-se partícipe ativo de “tudo isso que está aí”, como venda de voto, saque de carga tombada, propina para o guarda de trânsito, subtração de materiais do trabalho para abastecer a própria residência, compra de produtos roubados a preços atrativos, etc.


Sabe-se que – não sem merecer - o maior bode expiatório da “corrupção” é a classe política. Recentemente surgiu um projeto para construir – com dinheiro público - um Shopping na Câmara dos Deputados em Brasília (!). Se o projeto um dia for para frente, ao menos esperamos que ao invés de disponibilizar um espaço nos banheiros denominado Fraldário, o renomeiem para “Fraudário”.


Ocorre que se o problema do Brasil fosse de fato somente a classe política, seria mais fácil resolver, extirpando uma a uma, tais maçãs podres da sociedade tupiniquim. Mas eis alguns números interessantes: Em 2014 , cruzando dados da ANATEL e do IBGE, a Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA) estimou que haja cerca de 22 milhões de domicílios no país conectados à TV a Cabo, e que 18,4% deles utilizam instalações clandestinas (popularmente conhecido como “Gato-Net”); Após pesquisa, o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS)  Estimou que 19% (22,5 bilhões) dos gastos dos Planos de Saúde em 2015 no Brasil foram destinados a pagamentos de fraudes e despesas desnecessárias (por “despesas desnecessárias” tais Operadoras entendem ser os procedimentos receitados pelos médicos apenas para auferir lucros para si próprios e/ou comparsas – como exames, tratamentos e medicações, que pouco ou nada contribuíram para a melhora do segurado/paciente); Segundo levantamento do Ministério do Desenvolvimento , cerca de 1,3 milhões de pessoas em todo Brasil estavam recebendo benefício de “auxílio-doença” do INSS em meados de 2017. O Governo objetivava um pente fino em pelo menos 500 mil desses pagamentos. Após fazer perícias em cerca de 180 mil beneficiários, 160 mil pagamentos de benefício foram cancelados por se constatar que a incapacidade laboral não persistia e a pessoa já estava apta a voltar ao trabalho; A Serasa Experian  divulgou recentemente uma mensuração dos primeiros cinco meses do ano de 2017, a qual apontou que no Brasil ocorre uma tentativa de estelionato a cada 16,8 segundos.
Debater sobre a pobreza, a alta carga de impostos incidindo no preço final dos produtos (o que em parte empurra as pessoas a recorrerem à fraude para obtenção de bens e serviços), discorrer sobre a necessidade de “dar exemplo” ter de vir de cima (políticos) primeiro, é como debater quem veio antes; o ovo ou a galinha. A questão aqui levantada não é o ato, a prática corrupta, fraudulenta, desonesta, e sim a questão cultural do autoengano: corrupto é o brasileiro, não eu.


Ocorre que, para bem da verdade, essa necessidade de autoengano é humana e inexorável, como explica Ariely (2012). É humano se enxergar como alguém bom, honesto, direito... é questão de auto estima e sobrevivência. A desassociação ou um hiato entre a imagem que temos de nós mesmos e a pessoa que somos de fato (nossas atitudes) trará grande sofrimento ao indivíduo, por isso somos compelidos pelo cérebro a alinhar o real e o imaginário sobre o nosso eu.


Para que não ocorra um gap entre o quem eu sou e o quem eu penso ser, o indivíduo em suma se convence de não estar cometendo um ilícito, e sim dando um “jeitinho”.


Em pesquisa antropológica sobre o tema (BARBOSA, 1992) entendeu-se que na percepção popular em uma ponta está o fazer/receber um favor, e na outra ponta a corrupção. No meio entre tais extremos, estaria o jeitinho brasileiro, o qual passeia no espectro, deslizando mais para perto do favor quando interessa, mas que também escorrega para a outra ponta - a da corrupção - quando se faz necessário. Tal fronteira entre favor, jeitinho e corrupção é sempre borrada, uma divisa sem muros, sua caracterização entre ser um ou outro termo vai depender do contexto em que ocorre e relação entre as partes envolvidas, mas sempre claro; tendendo a ter sua gravidade suavizada em prol dos envolvidos manterem sua autoimagem positiva.


Posto tudo isso, recorda-se o foco deste artigo: a fraude, a corrupção, o ilícito, o jeitinho está deixando de ser um Perigo e se tornando um Risco. Isso porque Risco é concreto, é inerente, inevitável, intrínseco, característico, próprio, e são exatamente estas as características que a desonestidade tem assumido em nosso tecido social.


A Gestão de Riscos e o Compliance precisam ser os primeiros a abandonar o barco do autoengano, e aceitar que é impossível a ética por coerção. A honestidade é a escolha primeira do indivíduo quando percebida sua necessidade para a vida em comunidade. Assim como se deu o fracasso da Lei Seca  nos EUA no início do século - onde se tentou na força da lei reprimir a demanda atacando a oferta - também se dá dia após dia o “enxugar gelo” e o “peneirar formiga” dos setores anticorrupção nas corporações brasileiras.


Uma vez imposta, de fora para dentro e de cima para baixo, a honestidade se torna desagradável, penosa, e sem nenhuma chance de perdurar. Se pensarmos na fragilidade do cumprimento das leis cíveis a nível Brasil e do risco da Justiça Trabalhista inverter os papéis entre vítima e acusado, as coisas parecem muito mais atrativas ainda para o desonesto, e o freio do medo não o alcança.


A retidão deve ser internalizada pelo indivíduo, e não enfiada goela abaixo, do contrário, ele continuará no caminho errado, errando e se reconfortando com o autoengano. Muito mais do que impor barreiras para a fraude e os desvios de conduta, mais do que impor virtudes, que a Gestão de Riscos e o Compliance passem também a um trabalho de lembrar o indivíduo de seus vícios do dia a dia. Enxergamos as formigas e ignoramos o elefante. Ocorre que o elefante é um emaranhado de formigas, é o pequeno desvio, que cometido por todos; torna-se grande escala. É preciso reconhecer que um grampeador levado do trabalho para a casa equivale àquela primeira pedrada que a Teoria das Janelas Quebradas  recomenda resolver rapidamente. Um grampeador não é um material que se pode deixar para lá por conta de seu baixo custo, um grampeador é um Ativo da Corporação (!) Parafraseando o Filósofo e Professor Mario Sergio Cortella: Está faltando espanto.

 

Referências bibliográficas


ARIELY, Dan. A mais pura verdade sobre a desonestidade [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2012.


BARBOSA, Lívia. O Jeitinho Brasileiro: A arte de ser mais igual que os outros, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.


CRESSEY, Donald R., Other People’s Money: A Study in the Social Psychology of Embezzlement, The Free Press, Glencoe, Illinois, 1953.


GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos?: A ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


Sites


Folha de São Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/10/1929574-corrupcao-define-brasil-mas-nao-o-brasileiro-diz-estudo.shtml> Acesso em 04 Dezembro 2017.


Globo. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/apos-200-mil-pericias-governo-cancela-180-mil-auxilios-doenca-diz-ministerio.ghtml> Acesso em: 06 Dezembro 2017.


Globo. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/brasil-tem-uma-tentativa-de-fraude-a-cada-168-segundos-diz-serasa.ghtml> Acesso em: 06 Dezembro 2017.


Revista Apolice. Disponível em: <http://www.revistaapolice.com.br/2017/03/fraudes-e-desperdicio-consomem-saude>

Acesso em: 06 Dezembro 2017.


Revista Exame. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/tecnologia/pirataria-seria-a-terceira-maior-operadora-brasileira>

Acesso em 05 Dezembro 2017.


Revista Mundo Estranho. Disponível em: <https://mundoestranho.abril.com.br/historia/o-que-foi-a-lei-seca>  Acesso em: 06 Dezembro 2017.


Wikipedia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Paradoxo_do_mentiroso> Acesso em 04 Dezembro 2017.


Wikipedia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_das_Janelas_Partidas> Acesso em: 08 Dezembro 2017.

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