Gestão de risco social: uma análise da concepção e construção de hidrelétricas
Mario Alves W. de Souza, MBA, MBS, CIEIE
Mestre em Planejamento em Gestão de projetos (Linha de pesquisa em Riscos) pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas – IPT,
especialista em Gestão de Riscos pela Faculdade de Engenharia de São Paulo. Gerente de Consultoria da Brasiliano INTERISK
Durante todo o século XX a oferta farta de energia, obtida principalmente a partir dos combustíveis fósseis como petróleo e carvão mineral, deu suporte ao crescimento e às transformações da economia mundial. Já nos primeiros anos do século atual, o cenário mudou ao ser colocado à prova por uma nova realidade: a necessidade do desenvolvimento sustentável. (ANEEL, 2008)
Segundo o Ministério de Estado de Minas e Energia, a partir da década de 1970, duas regiões despontaram na oferta de energia hidráulica, Ásia e América Latina, com destaque para China e Brasil. Em 1973, segundo o Key World Energy Statistics (IEA, 2005), ambas regiões são responsáveis por 10% da produção mundial, proporção que se elevou para cerca de 31% em 2003.
Dados recentes do Banco de Informações de Geração (ANEEL, 2019), as hidrelétricas representam atualmente 60,26% dos empreendimentos em operação no Brasil.
A problemática Social
Cerca de mais de 80% da capacidade instalada no Brasil (hidrelétricas e pequenas centrais hidrelétricas) encontra-se na região Sul e Sudeste (MME, 2007). Este dado deve-se ao maior consumo de energia elétrica por essas regiões, conforme tabela 1.
Tabela 1: Consumo de Energia Elétrica por Região (2006). Fonte: MME (2007)
A figura 1, elaborada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) demonstra o grau de saturação do potencial hidrelétrico aproveitado. Como pode-se observar, a região Norte e Centro Oeste possuíam, na ocasião, menos de 10% do seu potencial aproveitado, ao passo que a região sudeste apresenta aproveitamento a 41%, com regiões apresentando aproveitamento superior a 71% (região do estado de São Paulo).
Figura 1: Índice de aproveitamento do potencial hidrelétrico brasileiro,
segundo a ANEEL (situação em março de 2003). Fonte: MME (2007)
Assim, o desenvolvimento do potencial hidrelétrico remanescente no Brasil encontra-se condicionado principalmente aos aspectos relacionados ao meio socioeconômico. Esta condição deve-se ao fato de sua localização estar em áreas delicadas, sob este aspecto, com interferências em territórios indígenas e áreas de preservação (MME, 2007).
Nesse sentido, Pinheiro (2007) aponta que dezenas de projetos de usinas hidrelétricas estão paralisados em função de (entre outros fatores de ordem técnica):
• Problemas judiciais; e,
• Cancelamento de licença ambiental.
Além dos paralisados, existem projetos que ao longo da fase de licenciamento, construção e fase final passaram por problemas e, atualmente, estão concluídos e em operação, porém, a área ainda é alvo de constantes conflitos sociais, econômicos e jurídicos (PINHEIRO, 2007).
Concepção de Hidrelétricas
São diversas as fases até que um hidrelétrica seja leiloada e construída. O Brasil adota um modelo de licenciamento trifásico, estabelecido no Decreto nº 99.274/90, conforme artigo abaixo:
Art. 19. O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças:
I - Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento de atividade, contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação, observados os planos municipais, estaduais ou federais de uso do solo;
II - Licença de Instalação (LI), autorizando o início da implantação, de acordo com as especificações constantes do Projeto Executivo aprovado; e
III - Licença de Operação (LO), autorizando, após as verificações necessárias, o início da atividade licenciada e o funcionamento de seus equipamentos de controle de poluição, de acordo com o previsto nas Licenças Prévia e de Instalação. (Art. 19, Decreto nº 99.274/90)
A figura 2 representa a integração dos licenciamentos com as fases da concepção de uma hidrelétrica, demonstrando de diversos estudos são realizados no âmbito operacional e ambiental, incluindo o social.
Figura 2: Etapas de implantação de aproveitamentos hidroelétricos. Fonte: Ministério de Minas e Energia (2007)
Estudo de Impacto Ambiental
A CONAMA 001/86, em seu artigo 2º, traz a obrigatoriedade de obras hidráulicas para a exploração de recursos hídricos realizarem um Estudo de Impacto Ambiental. Esse estudo tem, entre outros objetivos, analisar os impactos ambientais do projeto no meio físico, biológico e socioeconômico, conforme inciso abaixo:
Análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais. (CONAMA 001/1986 - inciso II, artigo 6º)
O Ministério Público Federal (2004), avaliando uma amostra de 80 Estudos de Impacto Ambiental, identificou falhas que podem justificar os conflitos recorrentes apesar das análises aplicada na concepção de hidrelétricas, com destaque para os pontos abaixo:
• Não-identificação de determinados impactos, ou seja, havia omissão por erro ou dolo;
• Subutilização ou desconsideração de dados dos diagnósticos, demonstrando falta de alinhamento entre a importância do impacto e o que fora identificado no diagnóstico;
• Tendência à minimização ou subestimação dos impactos negativos, omitindo dados e informações, podendo levar os atores envolvidos a uma concepção incorreta; e
• Proposição de medidas que não são a solução para a mitigação do impacto.
Frente ao apresentado acima, é possível observar constante falta de integração dos dados, onde os estudos são caracterizados por uma abordagem exaustiva (SÁNCHEZ, 2013) que, ao final, não possibilita uma visão clara e abrangente a todas as partes interessadas, dificultando a compreensão. Adiciona-se a esta falha, relatos de omissões por parte dos empreendedores, que podem caracterizar-se como fraude, trazendo enormes prejuízos a sociedade como um todo.
Risco Social
O termo “risco social” é integrado a diversas disciplinas, sendo ponto de interconectividade entre diversos riscos. É abordado na sociologia, antropologia, economia, ciências sociais, entre outros (LIU et. Al.,2016). Silva (2017), com base em pesquisa em diversas fontes, destaca que nas diversas áreas em que o risco social é abordado apresenta definições distintas, compreendendo desde desastres naturais, ameaças tecnológicas, condições de trabalho, criminalidade até saúde e atividades de lazer.
Kytle e Ruggie (2005) afirmam que (em tradução livre do inglês):
Da perspectiva empresarial, o risco social ocorre quando uma das partes interessadas com o devido empoderamento se envolve numa questão social e aplica pressão sobre a empresa (explorando uma vulnerabilidade, por exemplo: reputação e imagem corporativa), visando alterações em políticas ou abordagens de mercado. (KYTLE; RUGGIE, 2005, p.6)
Essa dinâmica com constante jogo de influência e pressão entre as partes interessadas é representada na figura 3.
Figura 3: Dinâmica entre as partes interessadas no Risco Social. Fonte: Adaptado de Kytle e Ruggie (2005)
Gestão do Risco Social em Hidrelétricas
Freitas (2016, apud Silva, 2017, p.49) destaca a relevância de realizar a gestão do risco social em qualquer empreendimento, sobretudo nos de grande porte, por envolver e impactar de forma mais significativa, direta e indiretamente, a sociedade local, podendo impedir o desenvolvimento do projeto quando conduzidas sem a devida diligência.
Entretanto, as organizações possuem maior vivência na gestão dos riscos financeiros, operacionais e outros ligados diretamente a sua atividade fim. Joyce e Thomson (2000, apud Gaviria, 2019, p.148) ressaltam que pelo fato da gestão de risco social não estar lastreada por nenhuma norma ou lei, as empresas não sabem como proceder quanto a esse tema.
Nesse contexto Acselrad e Pinto (2009) afirmam que o Brasil carece de estudos ou empresas de consultoria que atuem eficazmente na gestão do risco social, apontando que há carência na análise e gerenciamento dos riscos, onde a abordagem é superficial, sem avaliação sistemática do todo.
Assim, Liu et al. (2016) propõe as fases abaixo para a gestão do risco social:
• Composição de uma equipe dedicada para a estruturação e implementação da gestão de riscos;
• Identificação e caracterização das partes interessadas mais suscetíveis;
• Coleta de dados e informações por meio de pesquisas e comunicação, destacando as de maior criticidade;
• Identificação e categorização de riscos e respectivos tratamentos;
• Elaboração e implementação de plano de resposta emergencial; e
• Adoção e respeito a critérios éticos na política de implementação.
Proposta de Integração
Considerando que a realização do EIA não possui uma normativa estabelecendo diretrizes básica e não há uma visão clara de riscos considerando todas as óticas (ambientais e do empreendimento), a proposta de integração do EIA e Gestão de Riscos se apresenta como uma real necessidade, transluzindo a criticidade real e de forma independente dos riscos, dado que o EIA não apresenta mais credibilidade perante a população afetada e, por diversas vezes, apresentar viés em favor do empreendimento, sendo realizado apenas para cumprir uma determinação legal.
Sendo assim, a proposta de integração visa resguardar interesses tanto dos empreendedores quando da população afetada, gerenciando os riscos inerente. Os princípios abaixo foram inspirados na ISO 31000:2018, devendo ser observados para que o objetivo da integração seja plenamente atingido e não haja desvirtuamento.
a) Independente: o processo de gestão de riscos deve ser realizado por grupo diferente do EIA, propiciando visão nova e livre de pré-julgamentos;
b) Integrada: o processo de gestão de riscos deve integrar questões ambientais e do empreendimento partindo do EIA, ou seja, o estudo servirá como base;
c) Fatores Humanos e Culturais: o processo deve, obrigatoriamente, considerar a cultura local e regional (histórica e emergente) e o fator humano no sentido de percepção e avaliação ambiental, ou seja, as considerações que somente o ser humano é capaz de perceber e acrescentar, possuem valor no processo. A análise pautada exclusivamente em estatísticas e modelagem matemática não deve ser utilizada.
Figura 4: Princípios da Integração. Fonte: Elaborado pelo autor (2019)
O processo está totalmente alinhado com a norma ISO 31000:2018 e as ferramentas adotadas estão previstas na ISO 31010:2012. A intenção é que a integração não afete o formato de elaboração do EIA, e sim que haja perfeita sinergia, haja vista que os objetivos dos estudos são distintos. Assim, a ordem sequencial elaborada de integração consta na figura 5.
Figura 5: Fases do Processo de Integração. Fonte: Adaptado de Sánchez (2013)
Pautado nos princípios listados acima a proposta de integração é que haja dois produtos oriundos do Estudo de Impacto Ambiental, já previsto em legislação, ao invés de apenas um:
I. Plano de Gestão Ambiental: já existente e previsto legalmente, onde as ações visam atuar nos impactos que, de fato, irão ocorrer em decorrência de alguma atividade prevista no projeto;
II. Plano de Gestão de Riscos: a proposta é que seja um produto obrigatório, onde os riscos devem ser identificados, analisados e avaliados, e medidas de resposta e monitoramento adotadas, quando apropriado.
Adotando as premissas de Brasiliano (2018) e o formato da estrutura do processo da ISO 31000:2018, o Processo de Gestão de Riscos é composto por fases integradas e complementares, conforme detalhado na figura 6.
Figura 6: Framework do Processo de Gestão de Riscos. Fonte: Adaptado de Brasiliano (2018)
Conclusão
Frente aos dados apresentado e de acordo com as legislações vigentes, em especial na CONAMA 01/86 e CONAMA 237/97, a inclusão da gestão de riscos como tema obrigatório visa antecipar eventos negativos que podem impactar as partes envolvidas, possibilitando principalmente a adoção de ações de cunho preventivo. Essa fase atuaria também como uma análise crítica da avaliação de importância dos impactos, possibilitando discutir possíveis pontos de divergências, elevando a qualidade do Estudo de Impacto Ambiental. Para que os objetivos propostos sejam alcançados, a legislação deve prever:
• O plano de gestão de risco como um produto obrigatório no EIA;
• A independência de quem realiza o EIA e de quem realiza a análise de riscos;
• Que a análise de risco atenda a ISO 31000:2018, sendo realizada de forma estruturada;
• E que reportes sejam realizados de forma periódica, possibilitando o acompanhamento dos envolvidos.
Referências
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